Teletrabalho: guia para que não lhe escape nada
A pandemia e a necessidade de isolamento social obrigou milhares de empresas a adotar o trabalho à distância. E a verdade é que, como diz o ditado, a necessidade faz o engenho. De acordo com um estudo realizado pela CIP – Confederação Empresarial de Portugal – 92% das empresas inquiridas adotou o teletrabalho durante a pandemia e 48% pretende mantê-lo de forma permanente mesmo após o fim do estado de emergência.
A maioria das empresas considera que a produtividade dos trabalhadores manteve-se inalterada (43%) e aponta como principal vantagem a redução dos custos. Já como desvantagem referem a dispersão dos trabalhadores com atividades domésticas e familiares.
Já do lado dos colaboradores ainda existem desafios que é preciso resolver. Segundo o inquérito sobre Teletrabalho e Saúde Ocupacional, do Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública, 60% dos inquiridos gostaria de continuar em teletrabalho, no entanto 40% refere que as exigências são maiores e 60% admite trabalhar horas extra. Além disso, 40% diz não conseguir “desligar” do trabalho e apenas 38% está satisfeito com a conciliação entre a vida profissional e pessoal. Outra desvantagem apontada é a falta de apoio por parte da empresa para os colaboradores terem os recursos e as condições necessárias para trabalharem a partir de casa. Apenas 2,3% dos inquiridos diz ter equipamento adequado como computador ou secretária. Já 95% é responsável por pagar a própria internet, sem qualquer contribuição da entidade empregadora.
No regresso à “normalidade”, algumas empresas estão também a sentir a necessidade de adequar os seus espaços às regras de distanciamento social, o que faz, muitas vezes, com que precisem de escritórios maiores. Isto poderá implicar aumento de custos ou a procura por outros espaços, fora dos grandes centros urbanos, de forma a conseguirem reduzir as despesas inesperadas.
O Contas Connosco faz um guia com as principais respostas, dicas e ferramentas para trabalhadores e empresas se adaptarem ao regime de teletrabalho.
O que é o teletrabalho?
Segundo o artigo 165º do Código do Trabalho, “considera-se teletrabalho a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação”.
É aplicável a todos os trabalhadores?
Durante o Estado de Emergência foi “obrigatória a adoção do regime de teletrabalho, independentemente do vínculo laboral, sempre que as funções em causa o permitam”. No entanto, com o fim do Estado de Emergência, também o teletrabalho deixou de ser obrigatório a 1 de junho.
A que funções não se aplica o teletrabalho?
A todas as funções que não seja possível desempenhar à distância. Por exemplo: serviços de entregas ao domicílio, reposição de stock e atendimento nos super e hipermercados, motoristas, empregadas de limpeza, etc
Por quem pode ser desempenhado o teletrabalho?
O teletrabalho pode ser realizado por um colaborador que já faça parte da empresa e que, a pedido do trabalhador, da empresa ou por motivos de força maior (como aconteceu devido à pandemia de covid-19), passe a desempenhar as mesmas funções – ou equivalentes – a partir de casa. Também pode acontecer serem contratados colaboradores especialmente para o regime de teletrabalho.
Deve existir um contrato de trabalho?
Sim. A referência à “subordinação jurídica” significa que, no teletrabalho, existe uma relação de dependência entre o trabalhador e a entidade empregadora, no que diz respeito à forma como a atividade deve ser prestada, que deve estar estipulada num contrato de trabalho. Ou seja, o teletrabalho não deve ser confundido com a prestação de trabalho realizada, habitualmente, por trabalhadores independentes ou com o trabalho no domicílio.
E se não houver contrato de trabalho?
Idealmente, o acordo deve ficar por escrito. Se não existir um contrato, poderá ser mais difícil provar que existe um vínculo entre o trabalhador e a entidade empregadora.
O teletrabalho pode ser imposto pela entidade empregadora?
Durante a pandemia, podia ser imposto. Segundo o artigo 29º do decreto-lei que estabelece as medidas excecionais, “o regime de prestação subordinada de teletrabalho pode ser determinado unilateralmente pelo empregador ou requerida pelo trabalhador, sem necessidade de acordo das partes, desde que compatível com as funções exercidas”. Com o fim do Estado de Emergência, deixa de ser obrigatório e volta a ser regulado pelos termos do Código do Trabalho.
Quais os direitos de um trabalhador em regime de teletrabalho?
O artigo 169º do Código do Trabalho estabelece que um trabalhador em regime de teletrabalho “tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores, nomeadamente no que se refere a formação e promoção ou carreira profissionais, limites do período normal de trabalho e outras condições de trabalho, segurança e saúde no trabalho e reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional”.
O trabalhador tem direito a receber o subsídio de alimentação, mesmo estando em casa?
Sim. Existiram várias interpretações da lei por parte de diferentes advogados e, em resposta à UGT, o Governo esclareceu, remetendo para os sites da Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT) e da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT). Em resposta à questão, as duas entidades referem: “Sim. Os trabalhadores em regime de teletrabalho mantêm os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores.”
Por estar em casa, o trabalhador tem de estar sempre disponível?
Não. Segundo a lei, “o empregador deve respeitar a privacidade do trabalhador e os tempos de descanso e de repouso da família deste, bem como proporcionar-lhe boas condições de trabalho, tanto do ponto de vista físico como psíquico”. Na prática, é necessário que exista flexibilidade de ambas as partes.
A entidade empregadora pode controlar os tempos de trabalho do colaborador?
Legalmente, sim. De acordo com o artigo 170º do Código do Trabalho, “sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador” pode haver uma visita por parte da entidade empregadora para fazer “o controlo da actividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho”. Esta visita “apenas pode ser efectuada entre as 9 e as 19 horas, com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada”.
Quem paga o computador e a Internet?
Podem existir vários cenários. Se não estiver estipulado no contrato, a lei diz que “presume-se que os instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação utilizados pelo trabalhador pertencem ao empregador, que deve assegurar as respectivas instalação e manutenção e o pagamento das inerentes despesas”. Se os instrumentos de trabalho pertencerem à empresa, o colaborador não pode – pelo menos, legalmente – dar-lhes um uso que não seja para o desempenho das suas funções.
O teletrabalho pode trazer algum tipo de desigualdade?
Alguns estudos admitem que sim. O inquérito realizado pelo Barómetro Covid aponta questões como as horas de trabalho a mais, a dificuldade em conciliar a vida profissional com a pessoal e não conseguir desligar. Além disso, um estudo da Universidade de Sussex, citado pelo jornal The Guardian, refere que, na divisão das tarefas domésticas, a desigualdade piorou para as mulheres. 45% das inquiridas dizem ser responsáveis pela quase totalidade dos cuidados com os filhos; 70% são responsáveis por fazer o acompanhamento da escola e 73% das mulheres em teletrabalho e com filhos no primeiro ciclo diz que trabalhar a partir de casa é “difícil” ou “muito difícil”.
O Código do Trabalho vai ser revisto para adequar o teletrabalho ao atual contexto?
É uma hipótese em cima da mesa, já referida pela CCP – Confederação de Comércio e Serviços de Portugal. O presidente da CCP considera que, em 2021, poderá ser estudada uma revisão, aproveitando a experiência atual das empresas para perceber quais são as alterações necessárias.
Existem apoios para quem está em regime de teletrabalho?
No âmbito do Programa + CO3SO Emprego, o Governo criou o apoio à contratação em regime de teletrabalho que visa incentivar as empresas do litoral a contratarem trabalhadores para exercerem funções, através deste regime, no interior do país. A medida já foi publicada no Diário da República e está inserida no Programa de Estabilização Económica e Social. O incentivo permite que a empresa receba 219 euros por mês por pessoa, até um máximo de 36 meses, e obtenha mais 0,5 IAS (Indexante de Apoios Sociais) por posto de trabalho. Ainda neste contexto, surge o apoio à criação de espaços de coworking/teletrabalho no interior, com o envolvimento dos municípios ou infraestruturas tecnológicas. Este tem como objetivo captar jovens adultos para se estabelecerem em cidades do interior de Portugal, mantendo o regime de teletrabalho, porém com a condição de usufruírem de espaços comuns para trabalhar, promovendo a partilha de experiências e reduzindo aquilo que é um dos principais fatores da falta de motivação no teletrabalho, o isolamento e a falta da vida social.
Empresas, decorem esta palavra: flexibilidade
Gonçalo Hall é consultor de empresas na área do teletrabalho. Durante a pandemia, procurou adaptar o discurso e até as estratégias uma vez que, no seu entender, tratava-se de “uma situação de emergência e não trabalho remoto”. No fundo, a conjuntura forçou as empresas a adaptarem-se para sobreviver. Mesmo as que eram mais resistentes: “Todos os gestores tinham medo de implementar o trabalho remoto. A primeira pergunta que me faziam há dois meses era “Como é que eu vou controlar se os meus empregados estão a trabalhar?”. A resposta para isto assenta em dois factores: dar flexibilidade e medir a produtividade.
Gonçalo Hall aponta que o grande problema, na maior parte das vezes, é que “estamos a repetir o que fazíamos no escritório”, ou seja, “a fazer os mesmos horários e a ter praticamente os mesmos processos”. Por isso, o consultor assegura que a melhor forma de pôr as empresas a funcionar em teletrabalho é começar por “mentalizar os gestores que todos os trabalhadores têm de ter medidas de produtividade”. E, para isso, existem várias ferramentas disponíveis – das mais básicas às mais sofisticadas – e, atualmente, muitas até são gratuitas. Depois é necessário “implementar a flexibilidade”: “Se, ao final do dia, eu conseguir ver que o trabalho está feito, não me interessa em que horário foi feito. Há pessoas que só têm tempo produtivo das 6h às 10h da manhã, enquanto os filhos não acordam, e mesmo assim são mais produtivos do que se estiverem 8 horas no escritório”.
Para além disso, Gonçalo Hall assegura que os gestores e responsáveis de equipa têm de confiar nos colaboradores: “Se a pessoa não atender o telefone não podemos desconfiar logo. Pode estar a fazer uma pausa, a fazer exercício, a almoçar, a tratar dos filhos. Medir a produtividade e confiar é essencial”.
O consultor admite, no entanto, que existem negócios mais difíceis – ou impossíveis – de adaptar ao teletrabalho, como os cafés, mercearias ou lojas de roupa mais tradicionais: “Muitas PME têm negócios físicos que dependem do acesso ao público e de estar na rua. Se calhar, para estas, nunca houve esperança de trabalho remoto. Quando muito há esperança no online”. Outro desafio do atual contexto passa por existirem colaboradores com poucos conhecimentos ou dificuldades de acesso às novas tecnologias. Nesse caso, Gonçalo Hall sugere uma solução mais básica: “Os gestores podem usar o Google Sheet que é basicamente um Excel e as equipas têm de consultar este documento e colocar a verde as tarefas que já desempenharam. Para comunicar, podem usar o Whatsapp, que é uma aplicação que a maior parte das pessoas já utiliza para falar com a família e os amigos. Este é o nível 1 do teletrabalho”. Para as empresas mais recentes ou atualizadas, do ponto de vista da tecnologia e dos recursos humanos, o consultor já propõe três fases de implementação e ferramentas mais sofisticadas.
De uma maneira geral, Gonçalo Hall confessa estar “surpreendido pela positiva”. Pelos relatos que lhe chegam “as primeiras duas ou três semanas foram mais difíceis e agora está a correr melhor”. A maior parte das empresas refere que “a maior dificuldade é a comunicação”, mas “quase toda a gente que já trabalhava num computador conseguiu adaptar-se”. Por isso, o consultor acredita que “depois disto muitas empresas vão mudar-se para espaços de cowork ou mesmo fechar os escritórios, por razões de custos, e adotar de vez o teletrabalho”.
Guia para as empresas
Segundo Gonçalo Hall, as empresas devem passar por 3 fases de implementação:
- Comunicação
As empresas precisam de uma ferramenta central de comunicação. Por exemplo, Twist, Hangouts ou Teams. Podem optar por plataformas de comunicação com videochamada integrada (como o Hangouts e Teams), ou ter duas em separado (como o Zoom). É necessário que tenham regras claras sobre como comunicam e onde comunicam. Definirem, por exemplo, que o telefone só é usado para emergências e o resto da comunicação é feita através da plataforma.
- Documentação
Depois, as empresas precisam de ter uma plataforma onde a informação está acessível para os colaboradores. Em particular, informação sobre os processos repetíveis. Por exemplo: um processo de recrutamento, como se envia um newsletter, etc. Esta informação não deve ser passada de boca em boca, deve estar tudo disponível online.
- Gestão de projetos
Por último, é preciso definir quem faz o quê e quando. Existem ferramentas – como Asana, Trello ou Monday – que servem para definir quem faz o quê, quem é responsável pelas tarefas e quando devem ser feitas. Estas ferramentas ajudam as pessoas a saber o que têm de fazer quando acordam e ajudam o gestor a saber quem está a fazer o quê. As vídeochamadas também são essenciais para a comunicação não verbal e para manter a cultura da empresa. Quando estamos a ter uma discussão por escrito é mais fácil haver mal-entendidos. Além disso, à sexta-feira, às 18h, por exemplo, a equipa pode fazer um beer talk (convívio informal) e outra todas as manhãs, durante 10 ou 15 minutos, para fazer o resumo do dia anterior e projetar o que se deve fazer no próprio dia, de forma a identificar algum problema e adaptar o esforço.